3.12.08

O vírus da palavra de Mersault




José Augusto Mourão, no prefácio à edição galega de Eletronic Revolution, um livro de William Burroughs, atestou:

"A palavra escrita é, literalmente, um vírus, uma forma maligna e letal. A crença de que algumas palavras e combinações de palavras podem produzir doenças e perturbações mentais graves é partilhada não apenas no campo da magia mas também no campo da psicolingüística e da pragmática. O efeito chamado perlocutivo é o efeito somático provocado pela proferição (elocução) da palavra que tem uma força (ilocucionária) particular."

Óbvio que só descobri isso depois de ler, após muito tempo figurando na estante, o clássico 'O Estrangeiro', de Albert Camus.

O curioso é que passamos um lapso mais ou menos extenso de tempo hibernando em relação a alguma idéia; quando alguém - ou algo - materializa essa idéia, sentimos o tempo perdido... Sentimos a falta que ela, sistematizada daquela forma, fez em nossas vidas.

Digo isso porque não aceitava ser como o Mersault. Fingia acreditar. Fingia achar bonito o amor. Fingia uma porrada de coisas. Fingia.

Ele foi condenado - afinal não chorou no enterro da própria mãe. Tudo bem, ele matou um cara. Mas a 'razão determinante' de sua condenação não foi, como era de se esperar e como prescreve a boa aplicação do direito, o dolo em que obrou. O desvalor do resultado 'morte' foi secundário. Ele não chorou, não se emocionou ante o túmulo de sua mãe, eis o motivo de sua sentença.

Ora, mesmo os mais implacáveis homicidas prestam suas homenagens às mães. Não digo isso por conhecimento próprio, mas por diversas daquelas tatuagens 'de cadeia', com sua beleza naïf e feitas com a rudeza de agulhas e tintas simples e o corpo de uma simplória caneta bic que não me deixam mentir.

...

Diversos trechos desse livro ainda me ecoam nas têmporas. Sim. Segue um deles:

"Maria veio buscar-me à noite e perguntou-me se eu queria casar com ela. Respondi que tanto me fazia, mas que se ela de fato queria casar, estava bem. Quis então saber se eu gostava dela. Respondi, como aliás respondera já uma vez, que isso nada queria dizer, mas que julgava não a amar. "Nesse caso, porquê casar comigo?", disse ela. Respondi que isso não tinha importância e que, se ela quisesse, nos podíamos casar. Era ela, aliás, quem o perguntava, e eu contentava-me em dizer que sim.

Maria observou então que o casamento era uma coisa muito séria. Respondi: "Não". Maria calou-se durante uns instantes e olhou-me em silêncio. Depois, falou. Queria simplesmente saber se, vinda de outra mulher com a qual estivesse relacionado do mesmo modo, eu teria aceito uma proposta semelhante. Respondi: "Possivelmente".

Perguntou então de si para si se gostaria de mim, mas, sobre esse ponto, como poderia eu saber alguma coisa? Depois de mais uns instantes de silêncio, murmurou que eu era uma pessoa estranha, que gostava de mim se calhar por isso mesmo, mas que um dia, pelos mesmos motivos, era capaz de passar aos sentimentos contrários. Como eu me calasse, por não ter nada a acrescentar, tomou-me o braço a sorrir e declarou que queria casar comigo."


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