19.12.08

A arte de produzir efeito sem causa


Uma semana a menos, uma semana a mais. Qual a diferença?

Foi meio por acaso que descobri a obra de Lourenço Mutarelli. Procurava a bula de um medicamento na internet quando li uma resenha sobre um de seus livros. Já tinha folheado algumas de suas antigas HQs, mas não havia registrado o nome da figura. E já tinha assistido ao filme 'O cheiro do ralo', que é uma adaptação de uma obra sua de mesmo nome.

Uma pena.

Desde então tenho lido bastante coisa assinada por ele. Como por exemplo, 'A arte de produzir efeito sem causa', que acabo de reler - intercalando a leitura com livros técnicos e uma e outra dose de domecq.

O livro é (com o perdão do clichê) um mergulho profundo em si mesmo. Ou melhor, um mergulho profundo na personalidade de Júnior, uma ex-pessoa que se vê diante de uma ex-situação que vai fugindo do seu controle.

Passando pela afasia, aparentemente, mas se aprofundando no 'vírus da palavra' de que trata Burroughs, o autor descreve sucessivamente uma série de eventos que dão uma nítida impressão do que deve ser se afastar de si mesmo. Nem imagino que tipo de experiência ele vivenciou pra narrar o processo com tanta nitidez.

Dialoga com o pai:

"- Filho?
- Quê?
- Eu preciso sair. Você não vai levantar?
- Quem?

- Quem o quê?

- Quem falou?
- Falou o quê, porra?
- Em mim.

- Você está dormindo de olho aberto ou o quê?

Júnior olha fixamente para o pai. Não responde. Sênior se sente ameaçado.
- Qualquer coisa, liga no meu celular.

- Não serve.
- O que não serve?
Júnior faz uma cara feia e repete com voz afetada:
- O que não serve?
- Você está bêbado ou o quê?
- Ou o quê.

(...)

A recepção do hospital está lotada. Uma sala ampla que parece menor do que é e mais estreita, sufocante, devido à quantidade de cadeiras, pela forma como as fileiras estão arranjadas e pela quantidade de pessoas derrotadas e pelo desânimo. Cadeiras de plástico vermelho ocupadas por homens e mulheres cinzentos.

(...)


- Vamos embora, pai.
- Não, vamos esperar. Pelo andar da carruagem a gente vai passar o dia todo aqui, mas agora vamos até o fim.
O hospital lotado. Gente feia e doente.

- O que você está sentindo?

- Cansado. A cabeça coisa. Dá aqui um negócio, confuso. Cansa.

- Vamos ver o que o médico fala.

- Um monte de coisas que aparece com essa coisa de repetir, repetir, repetir.
- É melhor você se acalmar. Quer tomar uma coca?

- Repetindo, sabe, pai? Umas coisa ruim.
- Sei. Eu vou buscar uma Coca-Cola pra você. Quer comer alguma coisa?

- Muito ruim, pai.

(...)

Os três jantam na mesa da cozinha. Júnior não consegue mais fingir que não percebe que aquelas figuras monstruosas são imitações pouco convincentes dos seres que antes habitavam a casa. São grotescas. A cara do pai é uma imitação ainda mais barata. Ele chega a ter nojo daquilo. É evidente que a cabeça do velho é de madeira pintada. Mal pintada. Os cabelos não passam de uma pelúcia barata. Seus movimentos também são mecânicos e desconjuntados. O corpo é estofado de palha."



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