9.12.08

Te assombra...


Voltava pra casa, depois de mais um dia subsistindo na base de 'práticas reiteradas'. Parei na padaria pra comprar uma coca, ajudaria na digestão do jantar que eu ainda iria fazer. O troco, obrigado. Saía da padaria. Ouvi então as vozes.

Tenho uma excelente memória olfativa. E o vento me trouxe cheiro de vela queimando. Há uma pequena igreja onde os fiés se acomodam apenas aos domingos para cultuar a Nossa Senhora de Fátima no caminho entre a padaria e a minha casa. Aos sábados e dias de semana, ela fica fechada. Tenho por hábito me benzer toda vez que passo diante do templo. Manias.

Encostada na porta da igreja havia uma jovem, aparentando não ter mais que trinta anos. Com as mãos estiradas nas grandes folhas de madeira que guarnecem a entrada, voltava seu olhar para a rua, mas sem fixá-lo em ponto algum. Ela estava cercada por duas senhoras com vestes tradicionais umbandistas, realmente paramentadas como mães-de-santo.

Uma das supostas ialorixás segurava uma cesta de vime repleta de moedas. Desconfio que eram moedas de baixo valor de face, porque se fossem moedas de R$ 1,00 haveria ali certamente um montante de quatro dígitos.

E enquanto uma segurava a cesta, a outra enchia as mãos com as tais moedas e despejava sobre o corpo da jovem, sem cerimônia. Moedas em profusão. Moedas em abundância. Pensei. O numerário tilintava no chão. E enquanto fazia jorrar generosamente todo aquele níquel sobre a jovem, a mãe-de-santo vociferava numa altura suficiente para que eu pudesse lhe servir de audiência, mesmo estando do outro lado da rua:

"- Eu tô te pagando, seu tatá. Sai daqui e amarra ele. Eu tô te pagando!"

A jovem parecia constrangida e incomodada. Mordia a boca. Nervosa. Suas mãos não mais estavam estiradas. Procuravam desesperadamente um lugar para ficar. Eu não estava olhando para constranger ninguém, pombas. Sei ser discreto. E estava escura, a rua. Passava batido do outro lado da calçada.

Foi quando notei que uma figura me observava. E identifiquei a fonte do cheiro de cera queimada que me invadira as narinas quando saí da padaria. Pelo menos uma dúzia de velas vermelhas queimavam aos pés de um índio. Me parece que ele estava de cocar e tudo. Era bem corpulento, tinha grandes bochechas e olhos meio puxados. Ou talvez estivesse de jeans e camiseta. Não importa. Não sei bem. Tava mais interessado no ritual. Nada obstante, ele me fitava como quem diz: "estou de guarda" ou algo assim. "Saia daqui" ou algo assim.

Continuei andando. Prossegui. Me animei em tirar uma foto. Queria registrar aquele momento belíssimo. Melhor não. A foto poderia me amaldiçoar. Bloqueio da vontade. Enunciado mental que viria num verbete. Não vale a pena perder a temperança de toda uma vida por uma foto, por mais peculiar que ela seja. Pensei.

Ignoro a natureza do serviço para o qual foi contratado o Sr. exu tatá caveira. Espero apenas que tenha valido a pena. E se me arrolarem pra testemunhar - afirmarei que houve o pagamento.


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